terça-feira, 30 de maio de 2017

O homem como ser político

Essa definição da felicidade como atividade humana racional tornasse mais compreensível se a situarmos na concepção teleológica aristotélica, segundo a qual as coisas transcorrem adequadamente se seguem o curso determinado pela natureza, no qual os inferiores são submetidos aos superiores e o todo é sempre mais perfeito do que as partes. Para Aristóteles, a natureza dispõe a fêmea ao domínio do macho, o escravo ao domínio do senhor, as crianças ao domínio dos adultos e a alma irracional ao domínio da alma racional. A vigência da razão virtuosa, por seu turno, é viável apenas na sociedade política, naturalmente superior aos indivíduos, portanto.

Em seu livro A política, Aristóteles descreve essa hierarquia natural a partir das relações domésticas, a primeira unidade social para a qual se inclinam os seres humanos (2002, p. 9-65). No interior desses núcleos familiares, escravos, crianças e mulheres estão sob a dependência do homem livre, ou melhor, submetidos, respectivamente aos poderes despótico, paternal e marital. Nessa ordenação natural, sublinha-se o predomínio da razão sobre aquilo que é irracional, caracterizando uma supremacia que se verte em benefícios para todos. 

O poder paternal sobre os filhos e marital sobre a esposa é justificado pela carência de razão das crianças e das mulheres, que, consequentemente, dependem do comando racional do homem – pai e marido – para a condução de suas vidas, com a única diferença de que os descendentes do sexo masculino, ao alcançarem a idade adulta, serão plenamente capazes de usar sua própria razão, emancipando-se do princípio racional paterno. 

Não é diferente a fundamentação aristotélica do poder do senhor sobre os escravos, explicada na suposta inferioridade natural destes últimos, que, conquanto capazes de perceber a razão em seu senhor, não conseguem jamais fazer uso próprio da razão, limitando sua contribuição à sociedade ao labor de seus corpos. Desse modo, ainda que o poder do senhor sobre o escravo, despótico, seja exercido para atender somente aos interesses do primeiro, a dominação é estabelecida pela natureza em benefício de ambos, pois o escravo teria pior sorte se fosse entregue a si mesmo. Não sendo naturalmente capaz de liberdade, tem no senhor a dimensão racional que lhe falta. Sendo a virtude sempre algo conforme a natureza, o mérito do escravo é resignar-se ao domínio do seu senhor, executando devidamente os serviços que lhe são ordenados.

Nesse sentido, Aristóteles estende sua argumentação à composição da pólis ou sociedade política, compreendida como construção prescrita pela natureza aos homens, não apenas por permitir maior estabilidade econômica e segurança militar, mas, sobretudo, pela finalidade de promover o bem viver dos homens, ou seja, a vida racional virtuosa. Dito de outro modo, assim como escravos, crianças e mulheres não têm autonomia e não podem existir por si, mas somente integrados no poder da sociedade doméstica, os indivíduos e as associações intermediárias não existiriam verdadeiramente fora do todo, quer dizer, da sociedade política para a qual são naturalmente propensos. O poder político, por sua natureza, diferencia-se dos poderes despótico, paternal e marital. Esses poderes domésticos, afinal, são exercidos por um superior sobre seus inferiores, e, além disso têm por fim o benefício específico de alguns, enquanto o poder do Estado é partilhado entre iguais, os cidadãos, e visa o bem comum. 

Essa sociabilidade inscrita na natureza dos homens, na qual os seres humanos realizam concretamente sua humanidade, exprime-se no conceito de philia, sobre o qual Aristóteles discorre em Ética a Nicômaco (2007, p. 235-264). Definida pelo filósofo como uma das exigências indispensáveis da vida, pois não seria pensável alguém escolhendo uma existência sem amigos, a philia ou amizade é discriminada em três tipos, de acordo com os motivos nos quais se sustentam: o útil, o agradável e o bem. 

Na amizade alicerçada na utilidade, os amigos se vinculam apenas por interesses próprios, ou seja, pelos benefícios que se possam extrair da relação, sendo que esta termina tão logo deixe de oferecer vantagens às partes envolvidas. Situação análoga verifica-se na amizade que se sustenta naquilo que é agradável, isto é, no prazer que se obtém na companhia do outro, sem que haja um afeto autêntico entre os amigos, pois desaparecendo o bem-estar que a presença de determinada pessoa proporciona, encerra-se também a amizade que se sente por ela. Ambas as formas de amizade, erguidas sobre a utilidade ou sobre o agradável, são imperfeitas, segundo Aristóteles, porque não existem pelo que os amigos são em si mesmos, mas pelo benefício pessoal ofertado pela amizade. 

A amizade perfeita é aquela em que os amigos se associam pelo afeto desinteressado que nutrem um pelo outro, desconsiderando-se qualquer benefício adicional que a relação apresente. Na amizade pelo bem, os amigos admiram-se pelo que, de fato, são e desejam o melhor um ao outro, constituindo-se o senso de comunidade no qual vigora a noção de bem comum, finalidade natural da sociedade política.

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